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Edda Malli é uma artista austríaca, já septuagenária, de vasta trajetória no estudo das artes plásticas. Dotada de agudo senso de observação crítica, acumula um saber e inteligência que surpreendem por suas considerações estéticas inquietantes, quebrando tabus e questionando valores estabelecidos.

A convite de alguns artistas de Brasília interessados nas perspectivas abertas pela nova vanguarda da arte musiva que se alicerça na interação desta com a arquitetura, ministrou um curso de curta duração na primavera de 2005.

Sendo a primeira vez que vinha à cidade, tive o prazer de recebê-la no aeroporto juntamente com outros companheiros que organizaram o programa de sua visita à Capital da República.

Depois de um brevíssimo descanso no Hotel, manifestou o desejo de conhecer imediatamente as obras de Oscar Niemeyer na Esplanada dos Ministérios. Queria aproveitar a luz diferenciada do pôr-do-sol que já se anunciava, para melhor apreciá-las.

À primeira parada, na Catedral de Brasília, teve seu primeiro impacto. A obra encantou-a pela beleza, mas especialmente pela felicidade do arquiteto em captar numa estrutura absolutamente nova o clima místico e religioso no seu sentido mais profundo e insólito. No espaço aberto vislumbrou a abertura concedida ao passeio da alma pelas inquietações do infinito.

Penetramos a Catedral pelo caminho interior, dos automóveis, mas depois deixamos a nave a pé, pelo passeio que conduz às esculturas de Alfredo Ceschiatti retratando os quatro evangelistas. Ali, não gostou do que viu.

Mas como não gostou? - indaguei, perplexo, ponderando a relevância do artista, a força da representação dos personagens bíblicos, a expressão transmitida pela grandeza das peças, suas curvas, seus volumes mágicos e imponentes, sua beleza universal.

Pois Edda Malli manteve suas considerações, observando que a Catedral de Oscar é o que é por causa de seu caráter abstrato, absolutamente renovador e diferenciado de qualquer outra obra do gênero. A seu ver, a obra do arquiteto estaria a exigir esculturas igualmente diferenciadas, de construção abstrata, com igual capacidade de abrir o pensamento e a alma dos fiéis para a expressão elevada do desconhecido, do místico profundo, da percepção íntima do imponderável que só a forma abstrata poderia fornecer. Neste sentido, criticou a preferência pelas formas figurativas tanto dos anjos pendurados do alto da Catedral, quanto dos evangelistas que vigiam a saída do templo.

É claro que revidei como pude, lembrando a importância e o peso do barroco brasileiro, que influencia a preferência de Oscar pelas curvas em grande parte de sua arquitetura assim como induz as opções de Ceschiatti na expressão de suas obras para a Catedral e em tantas outras. A artista austríaca admitiu a força da tradição seguida por ambos, aplaudindo a influência do barroco em sua representação modernista, mas manteve-se irredutível em sua crítica, observando que também neste caso, o autor (Ceschiatti) poderia ter realizado obras abstratas formatando curvas derivadas do espírito próprio da formação artística brasileira. Mas não figurativo!

O passeio seguiu em direção a outros espaços, onde ela também aplaudiu e tirou conclusões próprias em relação ao Congresso, à Praça dos Três Poderes e aos palácios em redor. Mas a questão crítica que colocou a respeito das peças de Ceschiatti me incomodou por meses a fio.

Por muito tempo fiquei pensando e refletindo sobre o que poderia ser uma obra abstrata capaz de conciliar-se com o sentido plástico da arquitetura do Dr. Oscar. Aos poucos fui me apropriando da idéia que Edda Malli plantou em meu espírito. Comecei a refletir sobre seus meandros mais íntimos e logo percebi as pistas deixadas pelo próprio arquiteto nos momentos poucos em que se afastou da prancheta para conceber esculturas destinadas a decorar sua própria obra. Há pelo menos duas peças com sua assinatura em Brasília, uma à frente do edifício-sede da Ordem dos Advogados do Brasil, na Av. L-2 sul, e outra doada por ele ao oftalmologista Marcos Ávila, que a edificou à frente de sua clínica na mesma via.

Em ambas, ocorre um fenômeno curioso, já percebido por outros companheiros, com formação artística ou não. Muitos deles acreditam que as obras são de autoria do artista Omar Franco, sem dúvida um dos melhores escultores brasileiros da atualidade e detentor de uma expressão plástica muito próxima daquela desenhada pelo próprio arquiteto Oscar Niemeyer na Av. L-2 sul.

Sempre emocionado com a qualidade das obras de Omar, cheguei a passar bem uma hora examinando detidamente uma peça de sua autoria, erguida não faz muito tempo à frente da empresa Badarucco, de Taguatinga, local de origem de boa parte de sua produção escultórica. Enquanto aguardava por um atendimento das funcionárias, fiquei alisando as curvas da escultura, estudando seus enlaces, mas principalmente suas curvas, seus significados côncavos e convexos, e sua profundidade... abstrata.

Meu Deus, estava ali a resposta que buscava há quase um ano, bem em frente ao meu nariz! A obra de Omar Franco tem tudo o que indicava a artista austríaca para a Catedral de Brasília, tem o sentido místico do abstratismo barroco, tem a inventividade do que há de melhor nas raízes da formação artística brasileira, tem a preferência cromática do nosso gosto tropical e guarda o sentido voluptuoso de nossa tradição artística. Sua obra tanto poderia sugerir evangelistas como pregadores, tanto apóstolos como missionários, homens santos ou ainda gárgulas medievais com a função de afastar os maus espíritos. Enfim, o tipo da escultura que deixa a leitura aberta tanto ao crente quanto ao incrédulo, ao devoto e ao apóstata.

Voltei a rever, agora com outros olhos, o auditório que Oscar Niemeyer concebeu para o Parque Ibirapuera, em São Paulo, inaugurado em outubro passado. Na porta de entrada, projetou uma gigantesca marquise em aço, já denominada “labareda”, como se fora uma língua de entrada, que se articula com a obra interior, em gesso, na mesma cor, assinada pela artista Tomie Ohtake. As duas peças (de Oscar e de Tomie) comunicam-se plasticamente, sugerindo um diálogo estético que no caso de Brasília o artista Omar Franco é, sem qualquer dúvida, seu melhor intérprete.

Enfim, fico confortado por verificar nessas identidades a chave de uma questão que fora apresentada por alguém de fora, uma artista austríaca já calejada de viajar o mundo, com olhos descomprometidos e sempre desconfiados. A resposta que Omar concede para essa questão deixa em Brasília a convicção de que é dele a resposta mais apropriada para a arquitetura de Oscar Niemeyer. Evidentemente que a interpretação não exclui outros valores artísticos que a cidade abriga e que já se fazem presentes em muitos logradouros. Mas é preciso admitir que no caso em estudo há uma afinidade qualitativa entre o que o arquiteto pensou para seus prédios e o que o artista definiu como seu caminho plástico, o que explicaria a grande acolhida de um e outro pelos moradores da Capital da República.

Gougon, inverno de 2006